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Foto do escritorTacun Lecy

Dez mais nove: Tempos no Axé


Tacun Lecy no Terreiro Raiz de Ayrá.
Tacun Lecy no Terreiro Raiz de Ayrá. | Fotografia: Gabriela Oliveira.

19 DE DEZEMBRO DE 1999 – Há exatos 19 anos, conduzido por Ògún[1], eu adentrava as portas do Terreiro Raiz de Ayrá, na cidade de São Félix, Bahia, para o início da minha caminhada no Àṣẹ. Na verdade, apesar de já sentir uma forte vibração e de ter uma enorme admiração e respeito pelo candomblé, naquele dia, eu ainda não pensava me tornar um filho de santo de qualquer terreiro que fosse. Apenas fui vivenciar uma cerimônia religiosa, o batizado de um menino de Ọde[2], filho de uma mulher de Ògún. Coisas do destino. Eu mal sabia o que estava reservado para mim após aquela data.


Voltando um pouco no Tempo, eu já namorava conhecer o Terreiro Raiz de Ayrá desde 1997, quando minha amiga Regina d'Ògún, Ekéjì[3] do Terreiro do Cobre, convidou a turma do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac) para curtir o São João de Cachoeira e ficamos hospedados em frente ao Terreiro, na casa da sua mãe, tia Tomásia. Então, todas as vezes em que saíamos para a farra eu olhava para a Roça com a certeza de um dia conhecer aquele espaço sagrado, o que não foi possível àquela época, pois a Zeladora da Casa, Mãe Mariá Kecy d'Ọ̀ṣun[4], não estava na cidade e não encontramos seu irmão, o Pejigã[5] Irineu d'Ògun, para que ele me apresentasse ao Templo Nagô-Vodum. Coisa de Oríṣa... Não era o Tempo!


O menino foi batizado por Ògún e esse foi o primeiro Oríṣa que vi dançar naquele barracão, que era bem mais simples que o de hoje, mas não menos vibrante. Também foi a primeira vez que eu ouvi o toque do candomblé nagô do Recôncavo, com o velho alabê[6] Maçarico dobrando o rum[7], conduzindo o Oríṣa a cruzar o salão, com a pisada forte no chão e coçando a barriga[8]; fazendo com que meu coração disparasse descompassadamente. O Nagô é lindo demais!


No outro mês, retornei ao Terreiro. Era festa de Ògún e fui para ajudar Mãe Mariá e o povo da Roça com os preparativos. Mas não queria compromisso! Como quase todas as pessoas que hoje são do Àṣẹ, e encostado na desculpa de não ter tempo, eu sustentava o argumento de que não teria condições de assumir as responsabilidades com as obrigações[9] religiosas que o Oríṣa e uma casa de candomblé exigem, dessa forma eu compareceria apenas quando pudesse, como um amigo ou um convidado mais próximo, para prestigiar e oferecer apoio no que fosse possível. Perguntei o que me era permitido fazer, uma vez que eu não era iniciado, então o Ọ̀gá[10] Bau d'Ògún designou a minha primeira função: "Pegue um pano, o óleo de peroba e limpe as cadeiras". Cumpri com o maior prazer e dedicação, pois sabia que pessoas importantes da religião sentariam nelas. Na noite daquele sábado eu ainda iria conhecer Idelson d'Ògún, Babalóriṣá[11] do Ilê Axé Ogunjá, e o Ọde que me traria grandes revelações para uma nova vida.


O ano seguiu e no seu decorrer aconteceram três obrigações que influenciaram definitivamente as minhas mudanças de posicionamento, postura e relação com o candomblé. A primeira foi na Solene do Caboclo Boiadeiro Menino Flor de Angaia, que é realizada anualmente no dia 15 de maio, quando o Caboclo Trovezeiro, incorporado em Pai Zuranga (Babalóriṣá do Ilê Axé Alaibi), iluminou minha cabeça, contando histórias sobre as conexões corpo-espírito; a segunda foi numa festa no Ilê Axé Ogunjá, terreiro que viria se tornar minha outra Casa de Àṣẹ, quando Ọde se comunicou como nunca acontecido antes e a terceira, e mais contundente, em uma festa de Ọ̀ṣun, quando eu, Leandro Bittencourt e Zezé Olukemi (Ifatolá Olapetun) tornamo-nos Ọ̀gás Apontados[12], passando juntos  pelo fundamento do toque do Adarrum[13]. A partir desse dia, iniciava-se uma nova etapa na minha vida religiosa. A fé no Oríṣa exigia de mim responsabilidade, compromisso, dedicação e muito trabalho neste segmento religioso afro-brasileiro. Eu precisava ser iniciado.


19 DE DEZEMBRO DE 2009 – Dez anos se passaram desde os primeiros passos no Raiz de Ayrá e lá estava eu novamente. Só que dessa vez numa condição bem diferente! Dessa vez eu estava dentro do útero da Casa de Ṣàngó[14]. Seguia-se ali a tradição da Confirmação de Ọ̀gá. Meu corpo carregava paletó, camisa, gravata, calça, cueca, sapatos, meias e boina. Tudo na cor branca; Sobre as roupas, descendo dos ombros em posição transversal, os fios de contas cruzavam a faixa na qual vinham cravados o oyè[15] e o nome do Oríṣa para os quais eu estava sendo confirmado: "Aṣògún[16] Ọ̀ṣun". Na mão direita um ọ̀be[17] e um agdavi[18]. Após os 21 dias no roncó[19], sendo cuidado, preparado e passando por todos os ritos de iniciação no culto ao Oríṣa, havia chegado o momento de renascer para o mesmo velho mundo, porém com novos caminhos e outras perspectivas. De cabeça baixa, percebi a aproximação das pessoas que me puxariam para fora: Ìyálaṣẹ̀[20] Mariá Kecy, Ìyálorìṣa[21] Maria Lameu, Ekéjì Adeilde, Aṣògún Nélson e Ọ̀gá Romário. Faltava o Babalóriṣa Idelson, mas um forte ilá[22] logo justificou a sua ausência: meu Pai Ọde havia chegado para me apresentar ao povo. Ao som dos cânticos de licença a porta do roncó se abriu e enfileirados, respeitando a hierarquia do tempo de iniciação e a posição de cada Oríṣa no darosã[23] do Terreiro, entramos no barracão... Chagara o Tempo de Erinlẹ̀[24] e do seu filho, TACUNLECY!


19 DE DEZEMBRO DE 2018 – Passaram-se dez anos e depois mais nove. Etapas de uma vida cheia de aprendizados, revelações, confirmações... Ciclos. Etapas importantes na evolução de uma vida em todas as suas esferas: espiritual, pessoal, profissional. Estradas diferentes, mas que seguem entrelaçadas e conduzidas pela mesma luz, em um único caminho.


Hoje, diferente dos outros anos, estou em minha casa. Estranho! Mas esses últimos anos tem sido tudo muito estranho mesmo. “O candomblé mudou”, é o que ouço falar por aí. Mas mudou em qual sentido!? Mudou para que!? Ou para quem!? O que as pessoas que reproduzem esse pensamento ou que aderiram a essa “mudança” realmente entendem das histórias dos nossos ancestrais que com muita resistência preservaram esses fundamentos, com suor, sangue e até mesmo com as suas vidas para que essas heranças pudessem ficar salvaguardadas!?


Entender a complexidade do culto ao Oríṣa ou de uma religião de matriz africana, fundamentados na oralidade, quando os saberes e fazeres são transmitidos de geração para geração, exige muito mais que “gostar da cultura negra”; que achar bonito colocar uma conta no pescoço; ou vestir vermelho na quarta ou branco na sexta. É preciso saber que a vivência nos cultos, a dedicação ao que se faz, a concentração nos ritos, a entrega do corpo e, sobretudo, o respeito às pessoas e ao que se aprendeu dentro do terreiro são condições fundamentais para que possamos receber o Àṣẹ Oríṣa.


Mas o candomblé mudou... Assim dizem. De repente, deu-se início a um novo ciclo. Diferente do que eu aprendi com os mais velhos (não apenas com os da minha Casa). Vai ver é isso!


Como um bom Filho de Ọde, passei a entender quando chega o momento de ficar escondido, esperar, observar, ouvir. Por agora, é necessário parar, calar, refletir... Preciso estar Caçador de mim mesmo. Encontrar o fio da meada que devo ter perdido nessa nova dinâmica do candomblé de clientes, de postos, de poses e posses. Creio que estamos pela linha do que Mãe Cici fala sobre a “afro contemporaneidade” e os seus efeitos nas nossas culturas.


Em meio às lembranças, busco no passado um caminho de entendimento. E então, vem bem forte em minha memória a imagem do Pejigã Irineu Ferreira (Pai Neu) – minha maior referência no candomblé – sentado à porta do terreiro e sendo cumprimentados pelas pessoas que por ali passavam e pediam sua bênção. Inclusive evangélicos, católicos e ateus. Lembro que certa vez, ao vê-lo naquele cotidiano, fixei bem o olhar nas ações daquela cena e pensei alto: “se um dia eu entrar para o candomblé e ficar velho, como esse senhor, gostaria muito que as pessoas tivessem por mim esse mesmo respeito que têm por ele”. Era óbvio que as reverências àquele senhor não estavam associadas apenas ao seu papel religioso. Ele transcendeu o candomblé, tornou-se uma referência não só para o povo de santo, mas para a sua comunidade.


É certo que não alcancei a idade de Pai Neu; ainda estou bem longe disso. E sobre o respeito, o que posso dizer é que não é algo que se alcança apenas por desejá-lo. O respeito é conquistado através das nossas condutas, das nossas ações, dos nossos posicionamentos. É uma condição na qual passamos a ser admirados pelo que somos e não pelo que tentamos demonstrar ser. E é certo que, ao final, Tempo dará a cada um o seu lugar na história. De certa forma, sinto o reconhecimento das pessoas com a minha trajetória e com o que defendo através das minhas palavras, dos meus atos e, também, da minha fotografia. Fico em paz quando me procuram e dizem que se sentem representados pelas minhas ações.


Hoje, olhando para trás e relembrando a caminhada, posso dizer que tenho orgulho do que consegui construir na minha vida. A conduta que tenho fora do terreiro é a mesma quando estou cultuando o Oríṣa, porque, para mim, essas duas vivências fazem parte de um todo. As relações podem ser distintas, mas o entendimento não pode ficar limitado apenas a um lado. Não idealizo o candomblé como o centro do mundo.  E apesar dos seus templos se constituírem como importantes espaços para o desenvolvimento de práticas sociais que prezam pelo respeito ao ser humano, temos outras responsabilidades fora deles. O equilíbrio é necessário! Não se pode ser uma pessoa dentro do candomblé e outra quando está fora dos terreiros. Não podemos ser bom para uma mãe ou um pai de santo e sermos ruins para os nossos pais biológicos. É absurdo pensar isso! Quando o Oríṣa me chamou “TACUNLECY”, eu assumi esse nome para a minha vida. E, por essa decisão, sou criticado por alguns adeptos do candomblé, mas mantenho o meu posicionamento. Independente da religião ou do lugar que eu esteja, eu sou filho do Oríṣa.


Confesso que desanima presenciar certas coisas. O corpo cansa dessas lutas que travamos para tentarmos manter o que nos foi ensinado. O desgaste é grande. Mas quando lembro da minha missão, recebo mais algumas sobrevidas para continuar caminhando. Especialmente quando encontro pessoas que compartilham dos mesmo sentimentos e que procuram dar seguimento às nossas histórias. Deixá-las seria uma atitude avessa à minha conduta. Sinto-me honrado por caminhar ao lado desse povo, nesse Tempo.  E para vocês dedico esse texto e os meus sentimentos nessa data.


“Cada um de nós compõe a sua história.”


Para: Adriano Azevedo, Aldenise Leal, Claiton Saccomani, Claudio Oliveira, Débora Letícia, Fabiana Sousa, Fabrício Bynho, George Pereira, Juliana Dias, Junior Pakapyn, Luciane Barbosa, Márcia Regina, Ney Nere, Nina Morais, Priscila Pinheiro, Regina Bonfim, Suzane Barboza, Taís Sacramento.

Nós somos o Templo do nosso Oríṣa!


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[1] Ogum: Divindade da guerra e dos metais.

[2] Odé: Divindade da caça, da fartura e da guerra. Caçador. No Brasil é confundido com Oxóssi, que é um tipo de Odé, um tipo de Caçador.

[3] Equede: Cargo honorífico circunscrito às mulheres que servem aos Orixás sem, entretanto, serem por eles possuídos. É o equivalente feminino de Ogã; Na etimologia da palavra, em Iorubá, Ekéjì é "a pessoa que está em segundo lugar".

[4] Oxum: Divindade dos rios e águas doces; Deusa da beleza e vaidade.

[5] A palavra Pejigã quer dizer “Senhor que zela pelo altar sagrado”; Na etimologia da palavra, Peji é "altar sagrado" e Gã é "senhor"; Ogã responsável pelos axés da casa, do terreiro; Primeiro Ogã na hierarquia; O mais velho de todos os Ogãs. Geralmente mais sábio, tem todo conhecimento do terreiro de candomblé, são os olhos da Mãe ou Pai de Santo.

[6] Alabê: tocador de atabaques; É o título que designa o chefe da orquestra dos atabaques, encarregados de entoar os cânticos das distintas divindades.

[7] Dobrar o Rum: expressão utilizada nos candomblés para indicar uma mudança de ritmo no toque dos atabaques, conduzida pelo Rum, que é o atabaque principal.

[8] Coçar a barriga: expressão utilizada nos candomblés Jeje-Nagô, especialmente no Recôncavo Baiano, que se refere à uma evolução das danças dos Voduns conduzidas pela convenção do atabaque Rum.

[9] Rituais internos do candomblé, nos quais a pessoa, depois de iniciada, tem de cumprir para o seu Orixá de tempo em tempo; Conjunto de atividades a serem feitas dentro de um terreiro de candomblé.

[10]Ogã: Pessoa superior, chefe, dirigente; É o nome genérico para diversas funções masculinas dentro de uma casa de candomblé. É o sacerdote escolhido pelo Orixá para estar lúcido durante todos os trabalhos. Ele não entra em transe, mas, mesmo assim, não deixa de ter a intuição espiritual.

[11] Babalorixá: Sacerdote chefe de uma casa de santo. Pai de Santo. Grau hierárquico mais elevado do corpo sacerdotal, a quem cabe a distribuição de todas as funções especializadas do culto. É o mediador por excelência entre os homens e os Orixás. O equivalente feminino é denominado Ìyálorìṣa (Ialorixá). Na linguagem popular, são consagrados os termos pai e mãe de santo. Nos candomblés Jeje, Doté e Vodunô; e nos Angola, Tata Nkisi (Inquice).

[12] Ogã Apontado: quando um homem é escolhido pelo Orixá para ser um Ogã. Equivalente ao Ogã Suspenso, que é quando passa pela cerimônia onde é colocado em uma cadeira e suspenso pelos Ogãs da casa, significando que, futuramente, será confirmado e passará por todas obrigação para ser um Ogã.

[13] Toque de atabaques e agogô, em ritmo rápido, contínuo e uníssono, que tem o poder de invocar os Orixás, determinando sua incorporação nos filhos de santo.

[14] Xangô: Divindade do fogo e da justiça.

[15] Oiê: Título, cargo, ordem, classe.

[16] Ogã responsável pela consagração dos animais aos Orixás. É um sacerdote; Em Iorubá, "adorador de Ogum".

[17] Obé: Faca utilizada nos rituais de consagração de animais.

[18] Aguidavi: Vareta com que se tocam os atabaques nos candomblés Jeje, Nagô e Ketu.

[19] Espaço sagrado onde ficam recolhidos os iniciados no candomblé.

[20] Ialaxé: Mãe do Axé, mulher responsável pelo Axé das casas de santo.

[21] Ialorixá: Sacerdotisa chefe de uma casa de santo. Mãe de Santo. O equivalente masculino é denominado Babalorìṣa (Babalorixá). Na linguagem popular, são consagrados os termos pai e mãe de santo. Nos candomblés Jeje, Doné, Gaiaku ou Mejitó; e nos Angola Mametu Nkisi.

[22] Ilá: Fala em tom de grito ou brado que o Orixá emite quando incorporado.

[23] O mesmo que "xirê"; Conjunto de danças cerimoniais onde ocorrem distintos ritmos, cânticos e estilos coreográficos característicos do desempenho de cada Oríṣa; Em Iorubá "ṣiré" é "brincar", "jogar".

[24] Erinlé: Um tipo de Odé (Caçador); O Caçador de Elefantes; Caçador da Terra de Elefantes; Deus do canto; No Brasil é cultuado como uma qualidade de Oxóssi.

[23] O mesmo que "xirê"; Conjunto de danças cerimoniais onde ocorrem distintos ritmos, cânticos e estilos coreográficos característicos do desempenho de cada Oríṣa; Em Iorubá "ṣiré" é "brincar", "jogar".

[24] Erinlé: Um tipo de Odé (Caçador); O Caçador de Elefantes; Caçador da Terra de Elefantes; Deus do canto; No Brasil é cultuado como uma qualidade de Oxóssi.

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2 Comments


Celiana Santos
Apr 24, 2019

Que história carregada de significados! Feliz em ler!

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Axé!

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